domingo, 5 de dezembro de 2010

SER OU NÃO SER PERSONALIDADE JURÍDICA?


(INSTITUIÇÃO OU ORGANISMO?)

A Lei, ora a Lei...
Getúlio Vargas, 1948

"Aos amigos tudo! Aos inimigos, a lei."
Provérbio popular brasileiro


Em razão da única discussão existente, estimulada e entabulada por pequena minoria e que foi motivo de debate na reunião de fundação da Aliança Cristã Evangélica Brasileira - ACEB, acontecida no último dia 30 de novembro, girar em torno da formalização ou não de sua existência jurídica, ouso apresentar a seguir breves e mal elaboradas linhas esclarecendo minha postura, sem o refinamento dos grandes doutrinadores e respeitoso em relação às posturas divergentes.

Vamos direto ao assunto: tornar-se ou não pessoa jurídica, ou seja existir no mundo do direito ou não?

Diz o Código Civil Brasileiro em seu artigo 45: “Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

O Legislador tomou cuidado em falar: “existência legal”, ou seja a existência sob o manto regulador das disposições constitucionais e da legislação infra constitucional, tal como o próprio Código Civil Brasileiro e inúmeros outros dispositivos, bem como e especialmente do ato constitutivo da pessoa jurídica, que no caso de uma associação sem fins lucrativos é um estatuto[1].

Pois bem, o estatuto de uma associação sem fins lucrativos é um contrato entre seus subscritores, determinando-se direitos e obrigações recíprocos e que após o devido registro produz efeitos contra terceiros.

Minha experiência ao longo dos anos de magistério e como operador do direito é que estatutos são consultados ou lidos em poucas ocasiões e nem deveria ser diferente, e essas poucas ocasiões se resumem ao abrir contas bancárias, aquisição ou alienação de bens imóveis e grandes litígios entre os membros associados da pessoa jurídica ou de determinada igreja.

Estatutos e legislação no geral (ambos tem natureza contratual, o primeiro natureza particular e o segundo natureza pública, pois o conjunto da legislação de um Estado é seu contrato social) são bons instrumentos para se justificar grandes falcatruas.

Afinal elaboramos contratos e estatutos no geral para que? Para alguém se proteger de outra pessoa ou para agredir outra pessoa. Quando uma eleição de uma associação é manipulada, mas perfeitamente legal, ou seja, transcorreu de acordo com o contratado, quer dizer que alguém usou da lei em benefício próprio, isto é: alguém agrediu a outra pessoa.

Por outro lado, quando nasce uma criança (pessoa física), em poucos dias é lavrado um termo de nascimento denominado “certidão de nascimento”, mas essa pessoa ainda é absolutamente incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil[2], ou seja, não pode por si só administrar e gerir seus recursos financeiros, seu patrimônio, seu estado civil. Quando, via de regra (existem exceções, tais como o casamento antes dos dezoito anos) essa pessoa completa dezoito anos, ela passa a exercer plenamente e pessoalmente os atos de sua vida civil, inclusive utilizando sua identidade civil, sua inscrição no Cadastro das Pessoas Físicas (CPF) da Secretaria da Receita Federal e etc...

Creio que essa mesma dinâmica pode se aplicar a uma organização qualquer: primeiramente a organização passa a existir no mundo fático e somente após sua maioridade é que passará a existir para o mundo do direito, pois ai já estará estável, consolidada e bem estabelecida. Até mesmo preparada com anticorpos para lidar com seus dilemas internos, tais como litígios em razão de cargos e funções (poder e dinheiro) e outros mais.

Lamentavelmente, nós os profissionais que lidamos com os aspectos institucionais de uma determinada organização, somos pobres atores sociais quase sem importância, e para nosso conforto apresentamos a necessidade de formalização de determinada organização como algo de muita importância, de modo que assim nossa atividade e nossa própria existência também passa a ter uma certa relevância e seja socialmente justificada e reconhecida.

Quase sempre as pessoas que argumentam no sentido de associar legitimidade com formalidade, são profissionais das áreas jurídicas, contábeis ou de áreas afins tais como consultores e auditores dos mais diversos tipos de atividades.

Poderia citar grandes exemplos de boas organizações devidamente institucionalizadas que não “deram certo” a começar pela antiga Aliança Evangélica Brasileira – AeVB, também lembro da boa editora da Convenção Batista Brasileira (das Igrejas Batista), a JUERP, e poderíamos citar empresas e bancos, que de tempos em tempos são alvos fáceis de grandes falcatruas, em que pese toda a (falsa) proteção jurídica, institucional que se cria em torno de tais organizações.

De tempos em tempos aparece em matérias jornalísticas a exposição da existência legal de pessoas jurídicas que não existiam no mundo real (eram somente papel), mas eram perfeitas no mundo do direito, e dessa maneira foram usadas para alguém se locupletar legalmente mas sem qualquer pudor ético.

Pois bem, nem para proteger a organização sua institucionalização presta.

Mas vejamos se seria ilegal manter uma grande rede de interesses comuns funcionando sem personalidade jurídica e estatutária (em que pese o fato de que certamente existirá uma forte e marcante personalidade sociológica, antropológica e religiosa ou não).

Primeiramente há de se lembrar de nossa Carta Magna, que em seu artigo 5º. Inciso XVII dispõe o seguinte: “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;” e combinando com o inciso II, desse mesmo artigo, que diz: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;” percebemos uma grande força no texto constitucional brasileiro, pois não existe lei alguma que obrigue alguém a formalizar juridicamente sua associação com outra pessoa para uma mesma e determinada finalidade. Não se fala aqui em deveres fiscais, tais como emissão de notas fiscais, que uma empresa comercial estaria obrigada, mas tratamos da própria existência desta ou daquela associação.

Temos bons exemplos de grandes atores sociais que funcionam bem sem que tenham personalidade jurídica, tais como o MST e a rede RENAS. Observamos que nenhuma ilegalidade existe nesses dois “movimentos”, simplesmente não existe lei que os obrigue a uma existência jurídica.

A rede RENAS é “hors concours”, e é de conhecimento lato que está acima de qualquer suspeita, não tendo competidores a lhe fazer frente na questão de transparência e seriedade em sua administração e o MST, ao contrário do que boatos e a grande imprensa divulgam mantém uma postura muito séria na administração financeira de seus recursos
Portanto, temos grandes exemplos de grandes golpes aplicados utilizando-se a legitimidade de uma personalidade jurídica, e bons exemplos de boas organizações, que sem a existência de uma personalidade jurídica cumprem sua função. Poderemos discordar ou não sobre a finalidade e o papel social de tais organizações e a função para a qual elas existem, mas certamente são bons exemplos de funcionamento sem a existência de uma personalidade jurídica.

Por fim, lembramos de um pequeno ditado proferido por Tácito[3]: "corruptissima republica, plurimae leges", ora dessa maneira vemos a lei alimentando a corrupção do estado. Não se engane: nosso país é o que tem a maior quantidade de direito positivado do mundo, e o direito positivado é típico de sociedade onde o tecido social ainda é rudimentar e frágil, por esse motivo precisa de muitas leis e muitas lei alimentam essa fragilidade do tecido social, é um verdadeiro círculo vicioso que impregna o tecido social da nação.

Portanto, s.m.j., nosso entendimento é que a Aliança Cristã Evangélica Brasileira prossiga sua caminhada com a proposta de unidade, como rede, sem o engessamento de um estatuto e o custo da manutenção de um CNPJ com todos os ônus (não somente ônus financeiros desnecessários, mas principalmente ônus sócias, emocionais, políticos, etc.) que uma instituição nestes moldes dotada de personalidade jurídica certamente teria. 

Cícero Duarte


[1] Código Civil Brasileiro: “Art. 53. Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos... Art. 54. Sob pena de nulidade, o estatuto das associações conterá:...

[2] Código Civil Brasileiro: “Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I - os menores de dezesseis anos;
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
[3] Publius (Gaius) Cornelius Tacitus, historiador romano que viveu na segunda metade do primeiro século até os primeiros anos do segundo século.

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